Embriões, células-tronco e terapias celulares: questões filosóficas e antropológicas
Fagot-largealt, Anne. Embriões, células-tronco e terapias celulares: questões filosóficas e antropológicas, estudos avançados 18 (51), 2004 (p.229 a 245)
“foi calculado que, enquanto havia (em 2002) oitenta mil pessoas na espera de um transplante, não havia mais do que dez a doze mil óbitos de pessoas “úteis” para a coleta de órgãos, das quais apenas uma entre duas consentia em doar” (p.228)
“Mas prestar-se a uma retirada de medula óssea, de um rim, de um lobo de fígado ou de pulmão, é uma operação mais arriscada do que uma doação de sangue. Houve acidentes entre os doadores, alguns fatais, e complicações graves, particularmente durante as coletas de material do fígado.” (p.228)
“É preciso, portanto, organizar-se para dispor de matéria-prima suficiente. Todo cidadão deve admitir que isto é uma prioridade de saúde pública, e se isto demanda compensações financeiras aos doadores, que elas lhes sejam concedidas, é um mal menor.” P.(229)
“Nossas “leis de bioética” não nos protegem contra a necessidade de uma reflexão sobre estes problemas. De um lado, elas mantêm firmemente o princípio da gratuidade da doação (lei nº 94-653, artigo 16-6).” (P.229)
“A intervenção de uma junta de peritos e o regime previsto para o consentimento dos doadores, entretanto, tornam este procedimento complexo; e a manutenção estrita do princípio de gratuidade torna a doação menos provável à medida que o círculo de doadores potenciais se amplia.” (P.230)
“a pesquisa sobre os embriões “excedentes” originados da fertilização assistida (que seriam de outro modo destinados à destruição), ele proíbe não somente a clonagem de caráter reprodutivo, mas também a clonagem de caráter terapêutico, barrando assim uma via de pesquisa que poderia fornecer soluções alternativas. Na perspectiva de uma penúria de órgãos ou tecidos para transplante e na ausência de uma real proteção social dos doadores vivos, não há outra opção senão, entre uma restrição de acesso ao transplante (passiva: deixar morrer as pessoas inscritas na fila de espera; ou ativa: definir critérios de eligibilidade), o desenvolvimento sistemático do xeno-transplante (transplante de órgãos ou tecidos animais), e o desenvolvimento de órgãos artificiais (por exemplo, bombas cardíacas).” (p.231)
“Xeno-transplantes foram freqüente e seriamente considerados e algumas tentativas foram realizadas (transplante de coração de babuíno), mas teme-se que o perigo de introduzir na espécie humana por esta via doenças (por exemplo virais) potencialmente perigosas, exceda a vantagem que haveria”. (p.232)
“A medicina, porém, não pode simplesmente renunciar a socorrer aqueles condenados por seu destino biológico. A pesquisa sobre as células-tronco abreslhe hoje novas possibilidade.” P.(233)
“A particularidade das células-tronco é que elas podem, ao mesmo tempo, multiplicar-se de forma idêntica, para restituir células-tronco, e diferenciar-se para engendrar células especializadas. Elas podem também, ao que parece, desdiferenciarem-se para rediferenciarem-se em outra via: foi demonstrado em laboratório que células hematopoiéticas de ratos que normalmente engendram células sanguíneas, podem, sob certas condições, produzir células de fígado, de músculo ou de pulmão.” P.(233)
“Há uma década uma reflexão ética aprofundada tem acontecido em vários países sobre a aceitabilidade de produzir linhagens celulares a partir de células-tronco humanas, adultas ou embrionárias, e sobre as condições nas quais estas linhagens poderiam servir ao uso terapêutico. As células-tronco dos tecidos adultos são raras e às vezes difíceis de identificar” p.(233)
“logo antes da nidação, no ser humano) não têm mais o potencial de restituir um embrião completo, mas cada uma delas tem o potencial de formar todos tipos de célula do organismo (mais de duzentos tipos celulares): elas são ditas pluripotentes e chamadas de “células-tronco embrionárias”. Desde o fim do século XX, os biólogos aprenderam a cultivar linhagens destas células, primeiro no rato (1982), depois no homem (1998), e a controlar sua diferenciação em diferentes tipos celulares. Sabe-se, atualmente, produzir, desta maneira, vários tipos celulares... inclusive ovócitos e espermatozóides.” P.(234)
“Para que as esperanças terapêuticas se concretizem, é preciso que se aprenda a garantir a segurança do processo de diferenciação e de multiplicação celular. Uma célula susceptível de se multiplicar e de se desdiferenciar é também uma célula susceptível de se tornar cancerosa” p.(234)
“A técnica da clonagem consiste em substituir o núcleo de um ovócito (núcleo com n cromossomos de uma célula germinativa fêmea) pelo de uma célula somática (núcleo com 2n cromossomos de uma banal célula do corpo). Constata-se que o núcleo assim transferido é “reprogramado”: ele recupera suas potencialidades embrionárias. A célula que resulta da transferência de núcleo é, portanto, como uma primeira célula embrionária. Esta técnica é, em si, moralmente neutra. Tudo depende do que é feito dela. ”(p.235)
“A clonagem terapêutica visa ao desenvolvimento, não de um indivíduo humano, mas de uma linhagem celular humana”. (p.236)
“à clonagem terapêutica, o risco da exploração das mulheres doadoras foi freqüentemente citado; na realidade, especialistas de fertilização assistida respondem que a coleta de ovócitos de corpos (mortos) acidentados, ou de peças operatórias separadas do corpo, seriam suficientes para cobrir a demanda. As dificuldades técnicas não são, portanto, de modo algum insuperáveis. Permanece uma terceira dificuldade, que é ética ou cultural.” (p.237)
“O coração do problema é que no domínio cultural ocidental, a sacralização do ato humano procriador, ligada a uma cultura judaico-cristã (ou a seus componentes mais fundamentalistas), induziu fortes resistências à interrupção da gravidez, a todas as técnicas de fertilização assistida e à instrumentalização do embrião humano, todas elas consideradas como faltas ao respeito devido ao ser humano na medida em que sua existência responde a um projeto divino: “Desde o seio materno Iahweh me chamou, desde o ventre de minha mãe, pronunciou o meu nome”, diz a Bíblia.” (p.238)
“Um país que encoraja o desenvolvimento das biotecnologias, e particularmente a pesquisa sobre a clonagem terapêutica, como a Coréia do Sul, corre o perigo de perverter-se, e de que perversão se trata, da qual um país como o nosso proteger-se-ia proibindo este tipo de pesquisa? Existem domínios de pesquisa que uma espécie humana que se respeita deve evitar de explorar? É preciso apenas assinalar (retornando sensatamente a uma moral do bem) que no contexto de um sistema de saúde com recursos necessariamente limitados, investir muito dinheiro e energia no transplante e na clonagem terapêutica é uma opção, e que existem outras alternativas possíveis em termos de alocação de recursos... Aos especialistas de filosofia moral e política cabe propor balizas que possam guiar nossos juízos sobre estes assuntos delicados. Uma coisa parece clara: a questão daquilo que o ser humano pode autorizar-se a fazer sem perder o respeito por si próprio não é uma questão de ontologia biológica” (p.240)
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